A MOTIVAÇÃO DAS
DECISÕES JUDICIAIS
INTRODUÇÃO
Ante o direito fundamental à motivação das decisões
judiciais, previsto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, cabe ao
juiz justificar, de modo fundamentado, as razões pelas quais decidiu desta ou
daquela maneira, para, somente assim, ser considerada válida no âmbito do
Estado Democrático de Direito, isto é, não basta o juiz apontar para um ou
outro sentido, com base em dispositivos de lei, pura e estritamente
considerados, ou, ainda, em excertos jurisprudenciais ou lições doutrinárias muitas
vezes fora do contextualizados.
Frases colhidas da prática forense do
tipo “estão comprovados os fatos alegados pelo autor”, “o conjunto probatório
autoriza a procedência do pedido”, “indefiro o pedido de tutela antecipada por
inexistir prova inequívoca capaz de gerar a verossimilhança da alegação”, “indefiro
o pedido do autor, nos termos da lei” (mesmo indicando qual lei seja aplicável
ao caso concreto), dentre outras, encontram-se situadas numa dogmática jurídica
que expurga do “mundo do Direito” a hermenêutica e a retórica forense, dando-se
as costas para a correta aplicação dos direitos fundamentais, entre os quais se
destaca o direito de o jurisdicionado obter uma decisão judicial devida e
adequadamente motivada.
Diante dessa problemática, a motivação
das decisões judiciais consiste em uma base fundamental do Estado Democrático
de Direito e pode ser direcionada a apontar caminhos de superação ao dogmatismo
jurídico, a fim de que nas decisões judiciais sejam apontadas as análises
advindas das questões de fato e das questões de direito, sempre as valorando na
perspectiva do caso concreto.
1 BASE FUNDAMENTAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O
princípio da separação de poderes não possui mais aquela rigidez de outrora,
tanto que atualmente tem se optado por falar em colaboração de poderes. Ao
mesmo tempo em que os poderes têm que ser independentes si, devem estar
interligados de maneira harmoniosa, de modo a possibilitar o estabelecimento de
um sistema de freios e contrapesos, tão necessário para a “busca do equilíbrio
necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o
arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos
governados”.[1]
O
Legislativo é o responsável pela edição de normas gerais e impessoais, mas o
Executivo também desempenha importante papel nesse processo, seja pela
iniciativa das leis, seja pela sanção ou pelo veto. Contudo, a iniciativa
legislativa atribuída ao Executivo é contraposta, por seu turno, pela
possibilidade de Congresso Nacional modificar o projeto apresentado por meio de
emendas ou até mesmo de rejeitá-lo por inteiro. Nesse diálogo institucional,
destinado a repudiar tudo aquilo que possa ser classificado como arbitrário, o
Presidente da República ainda tem a faculdade de vetar os projetos de
iniciativa dos congressistas ou as próprias emendas que foram aprovadas a
projetos de sua iniciativa. Por outro lado, o Congresso, por maioria absoluta
de seus membros, poderá rechaçar o veto presidencial, e, por intermédio do
Presidente do Senado, poderá promulgar a lei, se o Presidente da República não
o fizer no prazo previsto no art. 66 da CF.
Os
Tribunais não influenciam a atuação do Legislativo. No entanto, são autorizados
a declarar a inconstitucionalidade das leis.
De
igual maneira, o Presidente da República não interfere na prestação da tutela
jurisdicional, porém, em contrapartida, os ministros dos tribunais superiores,
entre eles o Supremo Tribunal Federal, são nomeados por ele, após aprovação do
Senado.
Portanto,
por meio desses exemplos, vê-se que o sistema de freios e contrapesos busca
conferir harmonia entre os poderes, irradiando-se, entre eles, a ideia de
colaboração e controle recíprocos, para, com isso, evitar distorções e
desmandos.
Porém,
alguém poderia perguntar: o que a motivação das decisões judiciais tem a ver
com a estrutura política do Estado, com soberania, com sistema de pesos e
contrapesos?
Ora,
a motivação das decisões judiciais, ao mesmo tempo em que representa e
constitui uma garantia da Justiça, delimita o âmbito de atuação do próprio
poder do juiz. Se o juiz deve levar em conta as questões de ordens fática e
probatória, bem como as alegações das partes e as normas jurídicas aplicáveis
ao caso que lhe é submetido à apreciação até chegar à sua conclusão, parece
claro que a motivação constante na decisão judicial representa uma
justificativa democrática do poder que lhe é inerente. “A motivação mostra à
parte que o resultado do litígio não é fruto da sorte ou do acaso”,[2] nem mesmo do arbítrio judicial, presente até o final do século XVII.
Enquanto
a decisão legislativa (a lei) expressa o resultado do embate parlamentar, a
decisão judicial, muito embora possa ser aperfeiçoada em grau de recurso, pode
ser tomada apenas por um sujeito no plano processual: o magistrado. Por isso,
não basta o juiz estar suficientemente convencido sobre a decisão que
proferirá. Há necessidade de demonstrar quais são exatamente as razões de seu
convencimento.[3]
Não
há nenhum outro poder autorizado a interferir na fundamentação das decisões
judiciais. Todavia, como todo poder emana do povo, este (o povo) é quem
fiscaliza a atuação do juiz. A decisão judicial – notadamente a sentença – “é o
momento em que o juiz mais responde ante o povo pelo uso que faz desse poder.
Por isso, é imprescindível que a sentença seja clara e convincente para que o
sentimento do juiz seja compreendido sem dificuldades”.[4]
Assim,
o Estado, ao impedir a denominada justiça de mão própria, chamando para si o
monopólio jurisdicional, não pode isentar-se de motivar adequadamente as suas
decisões. “Sem motivação, não há que se falar em processo justo e em controle
das decisões judiciais, não há, pois, democracia processual. À sentença carente
de motivação não se reconhece, pois, um legítimo exercício de poder
jurisdicional nos quadros do Estado Democrático de Direito”.[5]
2 BREVES NOTAS SOBRE A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO DOGMATISMO JURÍDICO
O juiz não pode colocar-se como mero
aplicador da lei ao caso concreto, porque a dogmática jurídica necessita ser
superada por meio do reconhecimento de que o Direito não se submete aos
princípios epistemológicos das ciências naturais e muito menos das matemáticas.[6]
Toda vez que o juiz interpreta uma
lei, desenvolve uma atividade que cria o Direito. Ainda que a redação das leis
seja a mais adequada possível, próxima à “perfeição”, sempre existirão lacunas,
ambiguidades ou incertezas que, necessariamente, deverão ser resolvidas pelo
magistrado.
O traço da criatividade estará
presente em qualquer espécie de interpretação. Quando se ouve uma música ou se
lê um livro, se está – mesmo sem se dar conta disso – realizando a própria
interpretação. É que, ao interpretar uma norma jurídica, penetram-se os
pensamentos, inspirações e linguagens de outras pessoas com o objetivo de
compreendê-los e reproduzi-los em um novo e diverso contexto, de tempo e de
lugar.[7]
Por mais que o intérprete empreenda
esforços para manter-se fiel ao que se encontra expressamente contido no texto,
ele sempre estará incondicionalmente forçado a desenvolver sua própria
interpretação. Esses espaços ocupados por variações ou nuances é que permite ao
intérprete criar um texto diverso daquele desenvolvido pelo autor original.[8]
Mesmo quando são repetidas as
palavras dos predecessores, assumem elas um significado materialmente diverso,
uma vez que é impossível falar com o mesmo tom e inflexão do homem do século,
XVIII, XIX ou XX. O contexto e a situação referencial não são as mesmas e, por
isso, as palavras do texto repetidas pelo juiz nada mais serão do que “moedas
de uma nova cunhagem”, já que “o tempo nos usa a todos nós como instrumentos de
inovação”.[9]
Há distinção entre texto jurídico e
norma jurídica, porque o texto (enunciado) não se completa com o sentido que
lhe imprime o legislador. Ao contrário. Somente se completa quando o sentido
que ele expressa é produzido pelo intérprete, como uma nova forma de expressão,
de tal modo que o sentido expressado pelo texto já consiste em algo novo,
diferente do texto. Esse “algo novo”, “diferente do texto”, é a norma, que
sempre é resultante da interpretação. Enquanto os textos (enunciados)
configuram um conjunto de normas potenciais, que engloba várias possibilidades,
as normas (significados) são caracterizadas pelo resultado da tarefa
interpretativa.[10]
A aplicação axiológica do Direito
não nega que o juiz deva se manter situado no âmbito do sistema jurídico, até
mesmo porque desapareceria aquele mínimo de segurança jurídica desejável, se
cada juiz pudesse, a seu bel prazer, sem apresentar qualquer justificativa,
transformar-se em legislador.
Nesse caso, parece evidente que estaria instaurado um regime
de arbitrariedade judicial. Desse modo, o que se tem em mente é que o juiz possui
uma grande parcela de discricionariedade, sem sair do sistema legal.[11]
Nesse ponto, são valiosas as considerações
de Ovídio A. Baptista da Silva:
Sabemos, embora nem todos tenham a
disposição de confessá-lo, que o
direito é uma ciência da cultura, que labora com verdades contingentes,
situando-se muito distante da matemática e muito próximo das ciências históricas;
que o Direito, afinal, é uma ciência da
‘compreensão’, não uma
ciência ‘explicativa’; que
o juiz, ao contrário do que desejava Chiovenda, tem, sim, vontade e que o ato jurisdicional é necessariamente
discricionário.[12]
O abandono da ilusão de que o raciocínio jurídico alcance a univocidade do pensamento matemático, não nos fará reféns das arbitrariedades temidas pelo pensamento conservador, porquanto não se deve confundir discricionariedade com arbitrariedade. O juiz terá – na verdade sempre teve e continuará tendo, queiramos ou não –, uma margem de discrição dentro de cujos limites, porém, ele permanecerá sujeito aos princípios da razoabilidade, sem que o campo da juridicidade seja ultrapassado. Como observa Theodor Viehweg, no que se refere à lógica, a inclinação para o pensamento situacional e pragmático aconselha a preferência pela dialógica, como forma lógica.[13]
A respeito do tema, Ronald Dworkin
assevera: “Tal como o espaço vazio no centro de uma rosca, o poder
discricionário não existe a não ser como um pedaço vazio, circundado por uma faixa
de restrições”.[14]
Ocorre que, às vezes, “alguns desses
casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se
ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes”, o que, de certo maneira,
autoriza os juízes, em algumas situações particulares, a “criar um novo
direito, seja essa dissimulação criada ou explícita. Ao fazê-lo, porém, devem
agir como se fossem delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em
sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema”.[15]
Esse entendimento de Dworkin
coaduna-se, a título de exemplo, com o art. 1º, alíneas 2 e 3, do Código Civil
Suíço: “Caso não for possível extrair de uma lei uma prescrição, o juiz deverá
decidir segundo o direito consuetudinário e, na falta deste, segundo a regra
que estabeleceria como legislador”.[16]
A segurança é um valor que, isoladamente
considerado, se opõe à justiça. O desejo de alcançar decisões que mais
previsíveis, choca-se com os ideais de justiça, que estão em mudança contínua.
Daí que o valor justiça deve ser considerado mais importante que o valor
segurança, que serve, fundamentalmente, para garantir a segurança das classes
que fizeram a lei ou tiveram papel preponderante na sua feitura.[17]
De acordo com Nornerto Bobbio, “não se trata de encontrar o fundamento
absoluto – empreendimento sublime, porém desesperado – mas de buscar, em cada
caso concreto, ‘os vários fundamentos
possíveis’”.[18]
Assim, ao invés de o juiz procurar a
solução “correta”, deve empreender esforços para encontrar a solução mais
razoável, com base num discurso racional. Em outras palavras, o juiz deve
deixar de lado as considerações voltadas à manutenção da segurança jurídica
para se preocupar, antes disso, com a justiça do caso concreto, posto que “as
fórmulas abstratas da lei e a discrição judicial já não trazem todas as
respostas. O paradigma jurídico, que já passara, na modernidade, da lei para o
juiz, transfere-se agora para o caso concreto, para melhor solução, singular ao
problema a ser resolvido”.[19]
Para Ovídio A. Baptista da Silva,[20] há duas importantes razões justificadoras do princípio constitucional da
motivação das decisões judiciais. A primeira decorre da tendência dos sistemas
políticos contemporâneos ampliarem suas bases à luz de um regime democrático
participativo e universal. A segunda, conforme já mencionado alhures, advém da
necessidade de superar a formação estritamente baseada na dogmática jurídica,
reconhecendo que o Direito não pode submeter-se aos princípios epistemológicos
das ciências naturais e matemáticas.
A certeza, que se supõe adquirida após o
término da cognição judicial, não pode ser um critério ou um objetivo do
Direito. Se a justiça não pode ser normatizada, devem ser elaborados, em cada
caso concreto, “determinados critérios capazes de impedir que a ‘discricionariedade’
do ato jurisdicional se transforme em ‘arbitrariedade’”.[21]
O processo tem a missão de administrar conflitos
representados pela lide – “parcelas microscópicas da história humana” – e deve
ser pensado como uma realidade inclusa, ou seja, uma realidade que deve ser
instituída pelo ato jurisdicional que o encerra. Esta é uma das características
que diferencia o historiador do magistrado, uma vez que enquanto o primeiro
descreve o passado, enquanto passado, o segundo cuida de interpretar um passado,
que é a lide, para construir uma solução adequada e justa, conforme os padrões
delineados pelo Direito e os valores vigentes na respectiva comunidade social.[22]
O art. 131 do Código de Processo Civil
prescreve que o juiz, quando da prolação da sentença, está obrigado a indicar
os motivos formadores de seu convencimento, atendidos “os fatos e
circunstâncias constantes dos autos”. Porém, tais circunstâncias não estão
dispostas na lei e serão diferentes daquelas pensadas pelo legislador.[23]
O significado que deve ser dado aos
fatos presentes no processo não é tarefa do legislador. O legislador é
responsável pela elaboração do texto normativo, mas não lhe cabe interpretá-lo,
no plano processual. Diante disso é que se recomenda ao legislador elaborar
leis ambíguas, que deem certa margem de interpretação aos operadores do
Direito, pois, somente assim, será possível realizar a difusão de novas ideias
e, consequentemente, atualizar a aplicação do Direito às transformações
sociais, sem a necessidade de modificar-se o ordenamento jurídico positivado.
Afinal de contas, o texto normativo é único e os conflitos situados no seio da
sociedade são vários e cada qual com uma peculiaridade própria.[24]
Não se pode partir do pressuposto de que
a lei é produto da “vontade” do legislador, como se já viesse pronta e acabada
do “laboratório” legislativo, a impedir qualquer função criadora. Deve-se ter
presente que a lei poderá assumir inúmeros “sentidos”, de acordo com os
diversos momentos do seu percurso histórico, e, além disso, que a interpretação
está suscetível às circunstâncias e às exigências políticas e sociais de seu
tempo, de modo a harmonizar o texto com as mais variadas expectativas humanas
contemporâneas ao sujeito que se põe a cabo de interpretar o que deve aplicar.[25]
A motivação das decisões assegura a
independência e a imparcialidade do juiz, eis que ao ter que apresentar as
razões da decisão representa um estímulo à imparcialidade e ao exercício da
função judiciária, impedindo as escolhas subjetivas ou resultados que possam
ser frutos decorrentes de pressões externas.[26]
Não há dúvidas de que é pelo exame
detido da motivação que se pode constatar a existência de uma coincidência
total ou parcial entre as razões declaradas e os motivos reais que não foram
expressamente justificados, ou seja, é por intermédio da motivação que se tem a
possibilidade de conhecer a própria orientação subjetiva que presidiu a escolha
entre as diferentes alternativas possíveis.[27]
Diante disso, como bem decidiu o Egrégio
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, “É nula a sentença que não enfrenta
todas as teses defensivas levantadas. O momento sublime do ato sentencial é o
da sua fundamentação, daí por que deixar de apreciar teses da defesa representa
negativa de jurisdição”.[28]
O Desembargador Amilton Bueno de
Carvalho, responsável pela relatoria do referido acórdão, afirmou, ao longo de
seu voto, que o juiz de primeira instância tenha, em sua íntima convicção,
rechaçado as outras testes defensivas (princípio da insignificância e
desclassificação do crime de apropriação indébita qualificada para o de
apropriação indébita simples), ao indicar que não deveria vingar a alegação de
insuficiência probatória, ante a prevalência das versões apresentadas pela
vítima e testemunhas sobre à do réu.
No
entanto, não basta tal convicção encontrar-se situada no plano da intimidade do
juiz. Há que ser externada em texto para que a defesa possa exercer o seu
direito recursal na plenitude, atacando as razões concretas que levaram o juiz
a decidir como decidiu. Segundo Amilton: “a sentença deve ser explícita, clara
e contundente ao condenar, o que decorre não só do comando constitucional da
obrigatoriedade da fundamentação das decisões judiciais, mas também da garantia
da ‘ampla defesa’ e dos meios a ela inerentes”, não se admitindo, assim, “a
condenação por entrelinhas”.
E
mais: além de encontrar-se expressamente prevista no art. 93, IX, da CF,
assevera ainda o nobre Desembargador gaúcho, que “a importância da motivação
emerge do fato de que é através dela que o magistrado firma o seu compromisso
com a democracia, distanciando-se do poder arbitrário, exercido ao mero acaso e
conveniência dos ditadores”. “Daí”, prossegue, “porque todos têm o direito de
saber como e por que se deu determinada decisão”.
A lógica da subsunção do fato à norma
não é satisfatória no tocante à motivação das decisões judiciais. Se numa ação
de revisão contratual, à luz do Código de Defesa do Consumidor, o juiz simplesmente
disser que é abusiva a cláusula contratual que coloca o consumidor em
desvantagem exagerada e concluir por sua nulidade, estará, por descumprir o
art. 93, IX, da CF, tendo em vista que as decisões judiciais não podem
simplesmente reproduzir standards jurídicos.
A sentença que declarou a abusividade da
cláusula contratual corresponde a uma simplificação exagerada e pouco fiel
daquilo que realmente acontece quando da formação do convencimento do juiz. Por
isso, a figura lógica de um silogismo não terá lugar no momento de formação
mental da sentença, ou, se tiver, “antes de ser ele a formar a sentença, será
esta – depois de formada no espírito do julgador – que dará ensejo a um
silogismo, montado apenas com o fim de justificar e fundamentar a concreção da
norma legal”.[29]
Não se pode deixar de notar que: a) a lógica
jurídica é dialética e não formal; b) a exegese sociológica precisa prevalecer
sobre a literal; c) a lógica decisional opera problematicamente, e não
sistematicamente.[30]
As regras de conteúdo aberto ou
indeterminado devem ser interpretadas como se princípios fossem. Por isso, não
basta ao juiz dizer que há nulidade ante a existência de uma cláusula
contratual que coloca o consumidor numa situação de desvantagem excessiva. É
preciso deixar explícito, na decisão, o motivo pelo qual tal cláusula fere o direito
do consumidor, fazendo-se remissões diretas ao caso concreto.
Se na maioria dos casos concretos podem
ser visualizadas duas ou mais soluções possíveis e legítimas, não se pode
ignorar o fato de que a tutela jurisdicional não se resumirá a declarar a única
“vontade do legislador”, ou, ainda, a única “vontade contida na lei”.[31]
Com isso, o pensamento jurídico
distancia-se do dogmatismo, recuperando a função hermenêutica na compreensão
dos textos e deixando claro que texto e norma são coisas díspares, de tal modo
que a retórica recoloca-se como ciência da argumentação forense.
Frente a isso, além de o magistrado ter que
rever os critérios adotados no tocante à fundamentação de suas decisões, terá
que indicar os motivos pelos quais aceitou como válidos os argumentos do
litigante vencedor, e, mais do que isso, demonstrar, de maneira convincente, a
impropriedade ou a insuficiência das razões de fato e de direito apresentadas
pelo litigante sucumbente. A fundamentação das decisões, portanto, deve ser a
mais ampla possível, de modo a compreender todos os aspectos relevantes do
conflito, fazendo-se, em especial, uma análise crítica dos fatos,[32] pois se o direito nasce dos fatos, se está à frente de uma condição fundamental
para a prática da justiça.[33]
Para Barbosa Moreira, citado por Ovídio,
o dever de motivar, decorrente do direito de ação, consiste no direito que as
partes têm de serem ouvidas e de verem examinadas pelo órgão julgador as
questões que suscitaram no decorrer do processo, e, desse modo, não se pode perder
de vista que é na motivação que se torna possível “averiguar se e em que medida
o juiz levou em conta ou negligenciou o material oferecido pelos litigantes”,
de maneira a fazer com que essa parte da decisão constitua “'o mais válido ponto
de referência’ para controlar-se o efetivo daquela prerrogativa”.[34]
Se assim não fosse, de nada adiantaria a
Constituição Federal assegurar o contraditório, se, ao mesmo tempo, o julgador
estivesse limitado a “dizer que o sucumbente participou do processo, que fez
alegações e produziu provas sobre cujo mérito (demérito), porém, ele nada
disse; ou pior, fingindo que o fez, tergiversa sobre a versão que infirma seu
convencimento”.[35]
A garantia da motivação, de acordo com
Antônio Magalhães Gomes Filho, é “a última manifestação do contraditório, pois
o dever de enunciar os motivos da decisão implica levar em conta os resultados
do contraditório e, ao mesmo tempo, demonstrar que o ‘iter’ de formação do
provimento desenvolveu-se à luz da participação dos interessados”.[36]
Com efeito, a “estrutura dialética do
processo não se esgota com a mera participação dos interessados em
contraditório, mas implica a relevância dessa participação para o autor do
provimento; seus resultados podem até ser desatendidos, mas jamais ignorados”.[37]
Por oportuno, cogita-se, ainda, que a
motivação das decisões judiciais não deve se pautar apenas em aspectos
técnicos, inteiramente incompreensíveis aos leigos, porque, em respeito ao
regime democrático, o Poder Judiciário não pode apresentar-se como um poder
hermético, à semelhança das organizações judiciárias primitivas, quando a
revelação do direito era um misterioso segredo de sacerdotes.[38]
Não se deve negar que o nosso sistema
recursal encontra-se congestionado de decisões despidas de fundamentação, ou
ostentando fundamentação insuficiente, quadro este em grande parte provocado
pela “crescente litigiosidade que caracteriza a cultura do capitalismo
competitivo e individualista”.[39]
E a consequência disso é que “o número
de recursos aumenta na proporção em que aumente o número de provimentos
judiciais carentes de fundamentação”, ou, a
contrario sensu, de que “quanto mais bem-fundamentado o ato jurisdicional
tanto menor será o número dos recursos que o podem atacar”.[40]
Sob o enfoque do órgão revisor, a
motivação contida na decisão guerreada é o parâmetro mais importante a ser
considerado ao analisar os fundamentos do recurso. Se por um lado a
apresentação de uma justificação adequada e convincente na decisão recorrida
pode favorecer a sua confirmação pelo órgão julgador, por outro, mesmo quando
inexiste confirmação, a atividade desenvolvida apresenta-se em grande parte
facilitada pelo acesso ao raciocínio que foi desenvolvido pelo juiz a quo para chegar às suas conclusões.[41]
No entanto, tem-se tentado combater o
elevado aumento no número de recursos interpostos, procurando-se eliminar os
seus sintomas e não as suas causas, ou seja, tem-se procurado estabelecer
punições às partes que abusam no direito de recorrer, ao invés de se combater o
aumento exagerado de decisões judiciais sem fundamentação ou mal fundamentadas.[42]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário que as decisões sejam
concretamente motivadas, exteriorizando-se
os motivos pelos quais uma tese deu-se por vencedora e também os fundamentos
pelos quais outra tese deu-se por vencida, entrando-se a fundo na análise das
questões inerentes às normas, aos valores e à prova dos fatos carreados aos
autos.
O livre convencimento do juiz necessita
ser motivado, com base numa visão totalizadora da realidade.
Não basta “deferir” ou “indeferir”, julgar “procedente” ou “improcedente”, “condenar” ou “absolver”.
A motivação das decisões judiciais, ao
mesmo tempo em que é um dever que deve ser adequadamente cumprido pelo juiz,
resta por ser, também, uma indispensável garantia ao jurisdicionado, diante da
ideia que se firma acerca do devido processo legal justo e équo.
É através da fundamentação que se
controla a legitimidade democrática da atuação judicial.
Esse é o prelo que se paga por viver num
Estado que se pretende Democrático e de Direito, e que possui o objetivo de
afastar do processo toda forma de arbítrio e parcialidade judicial, ao mesmo
tempo em que busca promover a efetiva concretização dos direitos fundamentais.
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[3] MARINONI, Luiz
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[5]
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[6] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Jurisdição, Direito Material e Processo.
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[7] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad.: Carlos
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[10] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 7ª ed.
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[11] HERKENHOFF, João Batista. Como Aplicar o Direito . 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005,
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[12] BAPTISTA DA SILVA,
Ovídio A. Processo e Ideologia: o paradigma racionalista. Forense: Rio de Janeiro, 2004, p. 28.
[16] STERN, Klaus. O Juiz e a aplicação
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[17] PORTANOVA, Rui. Motivações Ideológicas da Sentença. 3º
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[18] BOBBIO, Norberto. A
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[19] BARROSO, Luís Roberto. BARROSO, Luís
Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional
Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). A Nova Interpretação Constitucional:
Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. BARROSO, Luís Roberto
(Organizador). 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 05. No mesmo sentido:
CAMARGO, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica
e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 203.
[26] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A
motivação das decisões judiciais na Constituição de 1988: funções políticas e
processuais. Revista do Advogado. Setembro
de 2008, nº 99, p. 18.
[28] TJRS, 5ª Câmara Criminal, Apelação
nº 70024322182, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 13.08.2008, v.u.
[29] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. 3ª ed. Porto
Alegre: Sergio Fabris, 1996, v. 1, p. 342.
[36] GOMES FILHO,
Antônio Magalhães. A motivação das decisões judiciais na Constituição de 1988:
funções políticas e processuais. Revista
do Advogado. Setembro de 2008, nº 99, p. 19.
[37] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A
motivação das decisões judiciais na Constituição de 1988: funções políticas e
processuais, p. 19.
[41] GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A
motivação das decisões judiciais na Constituição de 1988: funções políticas e
processuais, p. 20.