INTRODUÇÃO
Com a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988
ocorreu uma verdadeira ruptura para com o modo tradicional que se tinha de
interpretar e aplicar o Direito, tendo em vista que, a partir de então, tudo há
de ser feito à luz dos princípios constitucionais de justiça e dos direitos
fundamentais. Evidentemente, o Direito Civil não escapou do âmbito de
incidência das normas constitucionais. Muito pelo contrário, por força do
princípio da supremacia das normas constitucionais, estas modelaram todo o seu modo de ser, dando-se ensejo ao que
muitos chamam de Direito Civil Constitucional.
A
superação do positivismo jurídico clássico possibilitou que princípios outrora
tidos como verdadeiros dogmas no plano da relação contratual se divorciassem da
tradição então reinante no plano do Direito Privado.
Para
tanto, o Código de Defesa do Consumidor exerceu fundamental importância para
que isso acontecesse, uma vez que
as regras tradicionais do Direito Privado, fundadas
na dogmática liberal do século XIX, não mais atendem às necessidades das
relações jurídicas de hoje, notadamente em se tratando de negócios jurídicos de
massa, realizados sob a forma de contratos padronizados e de adesão.
Nesta fase, princípios que eram consagrados no passado,
como o da autonomia da vontade das partes, deixaram de ser intocáveis, em
especial nas áreas de obrigações e contratos.
No ponto, segundo Arnoldo Wald, a autonomia da vontade
se apresenta sob duas formas distintas, na lição
dos dogmatistas modernos, podendo revestir o aspecto de liberdade de contratar
e da liberdade contratual. ‘Liberdade de contratar’ é a faculdade de realizar ou não
determinado contrato, enquanto a ‘liberdade contratual’ é a possibilidade de estabelecer o conteúdo
do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um
negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua
realização.
Diante desta distinção, pode-se concluir, com segurança,
que é a liberdade contratual quem tem sofrido as maiores e mais significativas
restrições pelo Estado, porque a liberdade contratual, em tese, “só sofre restrições em virtude da ordem
pública, que representa a projeção do interesse social nas relações interindividuais.
O ‘ius cogens’, o direito
imperativo defende os bons costumes e a estrutura social, econômica e política
da comunidade”.
Nos últimos tempos, o Estado passou a interferir
decisivamente nas relações contratuais, valendo-se de preceitos de ordem
pública, do elevado valor atribuído à sua função social, da supremacia do
interesse público sobre o do particular e da boa-fé objetiva, que, em especial,
será analisada com maior interesse neste estudo.
O
princípio da boa-fé objetiva visa atender esse processo, revisando a força
normativa dos princípios jurídicos e fazendo com que as normas jurídicas sejam
mais facilmente adaptadas às novas necessidades sociais, que, como é sabido, se
encontram em constante transformação, para que se profira a harmonização dos
preceitos constitucionais de construir uma sociedade livre, justa e igualitária
(artigo 3º) e dignificar a existência da pessoa humana (artigo 1º, inciso III).
Ao advogar a importância da boa-fé objetiva nos dias de
hoje, não se está querendo inventar a
roda, como alguns querem fazer crer, valendo-se do argumento de que a
boa-fé sempre influenciou as relações jurídicas, pois inadmissível a adoção da
má-fé como regra. A opção aqui feita por esse tema se justifica pelo fato de
que somente no ano de 2002 o princípio da boa-fé objetiva foi positivado no
âmbito do Código Civil, o que, consequentemente, o torna legalmente exigível
para as relações entre pessoas iguais.
É certo que até a entrada em vigor do Código
Civil de 2002 ele era concebido como princípio geral de direito, mas,
infelizmente, tal status não lhe
bastava para ser constantemente invocado pelos tribunais nas decisões que
versassem questões controvertidas envolvendo manifestações de vontade.
Para Delia Matilde Ferreira,
o
Princípio Geral da Boa-fé – com os demais princípios, cada um no seu âmbito –
informa por força própria o ordenamento, impondo-lhe um caráter, e
infundindo-lhe a fertilizante seiva dos princípios éticos, dos valores sociais,
dotando-o, assim, de necessária flexibilidade, para manter sempre viva sua
força e permitir a permanente adaptação das normas às circunstâncias.
Agora, tendo em vista a crescente crise moral
pela qual se depara a humanidade, influenciada pelo selvagem sistema
capitalista, a positivação do princípio da boa-fé objetiva revela-se
absolutamente perspicaz, porque servirá como regra de conduta a ser seguida por
todos os que convivem em sociedade, de maneira a moralizar o que sem coação tem
se mostrado incontrolável.
1. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA
1.1. Direito Romano
O princípio ético-jurídico da boa-fé objetiva, que
consiste no dever de as partes agirem com lealdade em todas as fases do
contrato, tem sua origem mais remota no Direito Romano, haja vista que lá a fides
vedava a prática de um comportamento que pudesse tornar a execução do contrato
mais difícil ou onerosa. Proibia-se, assim, estimular qualquer tipo de
comportamento doloso em relação à execução do contrato.
A
expressão fides expressa a ideia de que a lealdade em todas as fases do
contrato representa uma garantia às partes, pois essas mesmas partes hão de
agir fincadas na palavra dada. Tanto que, conceitualmente, “a ‘fides’ pressupõe saber o que disse, cumprir o que se diz ou o que se promete.
Evidencia uma exigência de respeito”.
Para Menezes Cordeiro, “a ‘fides bona’ teria
revestido, no período clássico, a natureza de norma jurídica objetiva de
comportamento honesto e correto, respeitador da lealdade dos costumes do
tráfico”. Ressalta-se, assim, que o momento de destaque da boa-fé
objetiva se deu com a expansão comercial do Império Romano (século V a.C. a V
d.C), quando observou-se que o formalismo não mais se mostrava suficiente para
suprir as necessidades sociais, razão pela qual desenvolve-se a boa-fé para
enfrentar essa questão, pregando o valor da palavra dada.
Nessa passagem,
Era
necessário que as partes mantivessem a palavra empenhada qualquer que fosse o
modo pelo qual viesse expressa, além de um comportamento que correspondesse ao
costume das pessoas de bem e aos usos comercias. A evolução da boa-fé esteve,
portanto, ligada ao desenvolvimento do comércio e à atenuação do formalismo
primitivo, manifestando-se como lealdade à palavra dada.
Com o surgimento do ius gentium,
empregado nas relações entre os cidadãos romanos e os estrangeiros, a fides
de preceito ético passou a ter conotação normativa, o que impunha sua aplicação
a todos os homens, formando-se regras simples e flexíveis, baseada na fides
e desligadas das antigas formas solenes do ius civile. Daí é que surge o
conceito de ordem objetiva da fides bona, de maneira a expressar as
noções de confiança, de correção, de honestidade e lealdade entre as partes e
que deveriam à época nortear o vasto e emergente campo das relações comerciais.
Para se resolver conflitos de interesses
decorrentes do não cumprimento dos contratos, ou, ainda, de seu parcial
cumprimento ou mau cumprimento, a jurisprudência romana estabeleceu a bonae
fidei iudicia como a ação adequada, e, no bojo dessa ação, possibilitava-se
ao juiz não só declarar a existência e o valor da obrigação, mas também
examinar o quanto autor e réu tinham se afastado das exigências impostas pela fides
bona.
Ampliava-se, dessa forma, o poder discricionário do julgador.
Tamanha era a importância da boa-fé objetiva
nesse período, que Cícero chegou a dizer que ela era o fundamento da justiça,
isto é, a fidelidade e a sinceridade das palavras e acordos, de maneira a fazer com
que as partes agissem honestamente, repudiando a fraude.
1.2 Idade Média
Já na Idade Média, sob forte influência
do Direito Canônico, conferiu-se à boa-fé uma tonalidade ética que se
equiparava à ausência de pecado, traduzindo-se em um desvio de aplicação;
faltar com a palavra empenhada ou não agir de boa-fé era pecado.
Tal
interpretação era procedida em razão de o Direito Canônico ter laços morais e
éticos muito mais estreitos do que os traçados pelo Direito Romano. Tanto é
assim que quem procedesse com negligência voluntária ou habitual, ou seja, quem
não procedesse de maneira cuidadosa no decorrer da relação contratual estaria
cometendo pecado.
Dessa forma, a influência do Direito Canônico serviu para
que se proclamasse a autoridade superior da Igreja Católica e para que o
formalismo romanista fosse relativizado, mormente no que se refere à aplicação
do princípio da boa-fé objetiva.
Porém,
é na Baixa Idade Média (século VIII) que o princípio do consensualismo se
firma, com respeito à palavra dada, por influência do Direito Canônico,
conforme evidenciado na Decretais de Georgio IX, de 1243: “Pacta
quantumque nuda servantur” (qualquer pacto, mesmo o nu, deve ser mantido).
1.3 Idade Moderna
Com a
chegada da Idade Moderna, restou evidenciada a prevalência do princípio da
autonomia da vontade, passando a boa-fé a ser considerada apenas sob o prisma
subjetivo.
Com base nesse apontamento, a boa-fé passou a
ter aplicação bastante restrita, sendo-a na maioria das vezes apenas no campo
pertencente aos direitos reais, o que poderá ser observado no capítulo
seguinte.
2. A BOA-FÉ OBJETIVA, AS CODIFICAÇÕES E A
CLÁUSULAS GERAIS
No que tange às codificações, pode-se dizer que a
doutrina da autonomia da vontade foi nitidamente marcada pelos traços do
individualismo (no campo filosófico) e do liberalismo (no campo econômico), de
modo que todo compromisso querido (liberdade absoluta das convenções) haveria
de ser considerado justo.
Com a supremacia dos
ideais da burguesia francesa pós-Revolução, elaborou-se o Code Napoléon, em
1804, influenciando, de modo natural, o surgimento
de outros códigos em diversos países - processo chamado de codificação -, em
que o operador do Direito veio a sofrer limitações interpretativas. Ao juiz,
para ter-se ideia, somente era facultado declarar a “vontade da lei” ao caso
concreto, tal como se fosse um oráculo da lei, ou melhor, tal como se fosse a bouche de la loi.
Sem querer enfrentar as mazelas que essa técnica
interpretativa foi (e é) capaz de gerar, com o passar dos tempos, percebeu-se
que a ideia de que o Código Civil deveria estabelecer, inflexivelmente, todas
as situações fáticas possíveis de acontecer no cotidiano, merecia ser deixada
de lado, a fim de dar lugar ao entendimento de que no bojo de um Código Civil
devem estar presentes normas de conteúdo aberto e flexível, capazes de
possibilitar a evolução do Direito sem que a intervenção legislativa
apresente-se necessária.
Ao desenvolver este raciocínio, Sérgio Cavalieri Filho
indaga o seguinte:
Por que as cláusulas gerais? Porque a sociedade
moderna tornou-se tão complexa que não é mais possível legislar
casuisticamente, fazer regulação particular, prever na norma todas situações
que vão ocorrer na vida social. Particularismo não tem mais vez. Não há
legislador que aguente. Ainda que o legislador conseguisse prever tudo em um
determinado momento, amanhã já haveria algo diferente. Então não há outro
caminho, a não ser adotar critérios de legislação mais avançados, baseados nas
chamadas cláusulas gerais, nas quais temos uma moldura estabelecida em lei,
dentro da qual caberá ao juiz formular a regra para o caso concreto. A
regulação tem que ser genérica e geral.
Não é outro o posicionamento de Rogério Ferraz Donnini:
Na realidade, num mundo em que cada vez mais nos
deparamos com a rapidez com que os fatos surgem e reclamam uma solução também
célere do direito, o que se vê é um sistema legislativo incapaz de regular essa
vasta gama de fatos que devem ser normatizados. Esse fenômeno, aliás,
transcende nossas fronteiras e representa uma questão de difícil solução em
todo o mundo. Destarte, as cláusulas gerais têm esse importante papel de tornar
o sistema jurídico atualizado, para que possa responder eficazmente aos
reclamos da sociedade.
Enfim, diante de um mundo globalizado, em que os fatos se
sucedem de uma maneira extremamente veloz, tem-se que o ordenamento jurídico
não deve ter a pretensão de prever todas as possíveis hipóteses geradoras da
criação humana, sob pena de ser classificado como ultrapassado, desacreditado
e, sobretudo, não dispor de meios para fazer com que o Estado cumpra com
eficácia o seu dever de prestar tutela jurisdicional, tal como prometido na
Constituição Federal.
3. A BOA-FÉ OBJETIVA NO
BRASIL
No Brasil, a boa-fé objetiva foi primeiramente inserida
no art. 131 do Código Comercial de 1850, ao estabelecer que:
Sendo necessário interpretar as cláusulas do
contrato, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sob as
seguintes bases: a inteligência simples e adequada, que for mais conforme a
boa-fé, e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre
prevalecer a rigorosa e restrita significação das palavras.
Com base neste importante
dispositivo, muitas vezes esquecido durante o tempo em que esteve em vigor, o
Superior Tribunal de Justiça proferiu o seguinte julgado:
Compra e venda. Laranja. Preço.
Modificação substancial do mercado. O contrato de compra e venda celebrado para
o fornecimento futuro de frutas cítricas (laranja) não pode lançar as despesas
à conta de uma das partes, o produtor, deixando a critério da compradora a
fixação do preço. Modificação substancial do mercado que deveria ser suportada
pelas duas partes, de acordo com a boa-fé objetiva (art. 131 do Código
Comercial). Recurso conhecido e provido.
Dentro do direito comparado a boa-fé objetiva encontra-se
elencada como princípio em vários ordenamentos jurídicos, haja vista que diante
de flagrantes abusos, a liberdade contratual veio a sofrer temperamentos de
ordem ética, com a aplicação da boa-fé objetiva.
Marco inicial para uma mudança de
pensamento foi o BGB (Código Civil alemão, de 1900), que em seu parágrafo 242,
prevê a aplicação da boa-fé objetiva, endereçando-a ao juiz.
Na Itália, o art. 1337 do Código Civil, de 1942, diz que
as partes devem se comportar de acordo com os ditames da boa-fé (correttezza).
O artigo 227 do Código Civil português, de 1996, também
privilegia o princípio, ao estabelecer que: “Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto
nas preliminares como na formação dele, proceder de acordo com as regras de
boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra
parte”.
Já no Código Civil brasileiro de 1916, via-se, mesmo que
não amparado pelo melhor critério técnico, que a boa-fé objetiva tinha suas
raízes fincadas no artigo 1443: “Diz-se
que o seguro é um contrato de boa-fé. Aliás todos os contratos devem ser de
boa-fé”. Ora, se todos os contratos devem ser de boa-fé, por que
essa regra fora disposta no interior de um artigo que trata do contrato de
seguro? Não seria melhor tê-la inserido preliminarmente em uma parte de
natureza geral?
Entretanto, apesar dessa má regulamentação da boa-fé
objetiva no Código Civil de 1916, podia-se deslumbrá-la, ainda que
implicitamente, no art. 85: “Nas
declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal
da linguagem”. A esse preceito legal Maria Helena Diniz assinalava que
o intérprete do sentido negocial não deve ater-se,
unicamente, à exegese do negócio jurídico, ou seja, ao exame gramatical de seus
termos, mas sim, em fixar a vontade, procurando suas conseqüências jurídicas,
indagando sua intenção, sem se vincular, estritamente, ao teor linguístico do ato
negocial.
Segundo Washington
de Barros Monteiro,
Cuida-se inquestionavelmente de preceito salutar,
impregnado de profunda sabedoria. Declaração que não corresponda ao preciso
intento das partes é corpo sem alma. Deve ser arredado, portanto, entendimento
que se apegue tão-somente à literalidade da estipulação, ‘quantum
verba sonant’, com total desprezo da
rigorosa intenção dos interessados e dos fins econômicos que os aproximaram.
E mais: “com
relação aos contratos em geral, devem estes ser interpretados segundo a boa-fé,
as necessidades do crédito e as leis da equidade”.
O restante das disposições legais do Código Civil de
1916, que dispunha algo a respeito da boa-fé, a tratava apenas sob seu aspecto
subjetivo, conforme se nota nos artigos 109,
112, 500, 510, 516, 622, 1.002, 1.073, 1.405. Com a promulgação
da Constituição Federal de 1988, no entanto, por haver uma significativa
mudança dentro do capítulo referente à ordem econômica, inseriu-se o artigo
170, vislumbrando que: “A ordem
econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social, observados os princípios: ... V – defesa do consumidor”.
Como decorrência disso, fora editada a Lei nº 8.078/90, também
conhecida como Código de Defesa do Consumidor, que de maneira inovadora em
relação ao restante do mundo, estabeleceu normas em um microssistema sobre as
relações de consumo. Inclusive, o Código de Defesa do Consumidor manteve-se
atento à tendência de se positivar princípios gerais de direito, prevendo o
princípio da boa-fé objetiva em duas oportunidades, conforme se vê abaixo:
Art. 4º A Política
Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades
dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de
seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios:
III ‑ harmonização
dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa‑fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras,
as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV ‑ estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa‑fé ou a equidade.
Transcorridos mais de dez anos da entrada em vigor do
Código de Defesa do Consumidor, surgiu o novo Código Civil brasileiro,
positivando o princípio da boa-fé objetiva, ao prever, no art. 422, que: “Os contratantes são obrigados a guardar,
assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa‑fé”.
Como o Direito das Obrigações
se trata de um ramo do Direito Privado extremamente ágil, a flexibilidade
contida nas cláusulas gerais, como a que prevê a boa-fé objetiva, tende a
diminuir os riscos de uma má prestação jurisdicional, haja vista que o
magistrado terá maior liberdade no tocante ao seu poder de decisão.
Na visão de Eduardo de Oliveira Gouvêa:
A
liberdade para que o contrato seja celebrado, dentro de um estado que prestigia
a democracia como sistema de governo e que tenha um núcleo social amadurecido e
organizado, tem como lindes o justo equilíbrio entre as prestações recíprocas
dos contratantes, propiciando assim que a liberdade individual torne-se
poderoso instrumento para a concretização real da ideia do justo.
O princípio da boa-fé objetiva constitui, em realidade,
princípio geral de direito positivado dentro do Código Civil brasileiro e deve
ser aplicado com exatidão pela jurisprudência no seu papel intermediário entre
a lei e o caso concreto, valendo-se, certamente, dos caminhos abertos pelo
Código de Defesa do Consumidor, através do chamado “diálogo das fontes”.
4. SIGINIFICADOS DO
TERMO BOA-FÉ
O termo boa-fé bifurca-se em dois sentidos: subjetivo e
objetivo.
A
boa-fé subjetiva consiste em um estado de espírito, um estado de consciência,
como o conhecimento ou o desconhecimento de uma situação fundamentalmente
psicológica.
Para Otávio Guimarães, o estado psicológico da boa-fé
subjetiva está ligado a noção de erro, salientando, para tanto, que
Ocorre um êrro, ou uma falsa representação da
realidade, e tal fato determina uma apreciação defeituosa do acontecimento. O
sujeito delibera, contrata e põe-se em relação com outras pessoas, acreditando
que o fato tenha uma certa expressão, quando realmente é diverso o seu sentido.
O êrro, então, gera a boa-fé, ou o pensamento de não ofender o direito alheio.
Com efeito, apenas o erro escusável (inevitável) é apto a
revelar a boa-fé subjetiva, considerada como a concepção na qual o sujeito
ignora o caráter ilícito de seu ato, comumente visto no âmbito do Direito das
Coisas.
Ao passo que a boa-fé objetiva versa sobre norma de
conduta que determina a maneira como o sujeito deve agir no campo do Direito
das Obrigações, segundo parâmetros de lealdade e probidade.
A boa-fé objetiva possui um aspecto negativo e um
positivo.
Negativo, porque o contratante não pode deixar de cumprir
o contrato com lealdade e honestidade, utilizando o silêncio ou a falta de
clareza para obter proveito próprio às custas do prejuízo alheio. É o caso do
sujeito que diante do princípio da boa-fé objetiva se vê compelido a agir com
lealdade ao vender o seu veículo automotor que possui vício oculto.
Positivo, porque diz respeito à obrigação de cooperação
entre os contratantes, para que seja cumprido o objeto do contrato da forma
adequada, com todas as informações adequadas para o seu bom desempenho e
conhecimento. Essas obrigações são vistas, principalmente, nas relações de
consumo. Por exemplo, num contrato de prestação de serviços de natureza
bancária, o banco é obrigado a informar o cliente a respeito de todas as
cláusulas contratuais.
Por fim, a
boa-fé objetiva é considerada um standard jurídico, um parâmetro comportamental,
em que as atitudes dos contratantes (negativas e positivas) são valoradas de
acordo com a lealdade, a probidade e a honestidade.
5. CONCEITO DE BOA-FÉ
OBJETIVA
O princípio da boa-fé objetiva tem como grande virtude fazer
florescer na mente dos contratantes a ideia de procederem em todas as fases do
contrato com correção, de forma que os contratantes passem a se encarar não
como concorrentes, mas como parceiros.
Trata-se de uma cláusula geral que deve ser rigidamente cumprida pelos
contratantes, a fim de harmonizar e equilibrar a relação contratual.
Boa-fé objetiva, segundo magistério de Cláudia Lima
Marques,
é cooperação e respeito, é conduta esperada e leal,
tutelada em todas as relações sociais. A proteção da boa-fé e da confiança
despertada formam, conforme Couto e Silva, a base do tráfico jurídico, a base
de todas as vinculações jurídicas, o princípio máximo das relações contratuais.
Ruy Rosado de Aguiar, citado por Renata Domingues Barbosa
Balbino, conceitua-o da seguinte maneira:
Princípio Geral de Direito, segundo o qual todos
devem comportar-se de acordo com um padrão ético de confiança e lealdade. Gera
deveres secundários de conduta, que impõe às partes comportamentos necessários,
ainda que não previstos expressamente nos contratos, que devem ser obedecidos a
fim de permitir a realização das justas expectativas surgidas em razão da
celebração e da execução da avença.
Essa
boa-fé objetiva aludida consiste em um verdadeiro padrão de conduta a ser
seguido pelos contratantes, tendo como paradigma o comportamento do homem
mediano, pois, do contrário, estar-se-ia abrindo grande margem de possibilidade
para o cometimento de injustiças.
Por oportuno, válido é o posicionamento sustentado por
Régis Fichtner Pereira, em lição mencionada por Eduardo de Oliveira Gouvêa:
A experiência demonstra, como já referido, que não
há como se exigir do homem médio um padrão de conduta absolutamente escorreito.
O homem é um ser que por sua própria natureza possui defeitos. O Direito existe
justamente para impedir que o homem extrapole certos limites, pois, se assim
não fosse, se instalaria o caos absoluto e a lei do mais forte e do mais
malicioso. A exigência de comportamento de boa-fé de que se está aqui tratando
é a exigência jurídica e não a ética.
Não há que se falar no falecimento do princípio da
autonomia da vontade dos contratantes, uma vez que ela continua a existir.
Somente deixará de ser aplicado, em caso de colidência com a boa-fé. Na
verdade, a boa-fé objetiva indicará a medida sobre a qual poderá ser aplicada a
autonomia de vontade das partes. Em outros termos: o princípio da autonomia de
vontade, quando proporcionar desequilíbrio contratual, cede seu espaço para o
princípio da boa-fé objetiva.
Conforme salienta o Flávio Alves Martins,
mesmo que se reconheça serem os particulares os
melhores conhecedores de seus próprios interesses, não se pode deixar de
considerar a importância da imposição de limites a esse princípio das
obrigações, isto é, o da autonomia, que está submetido a uma revisão crítica, a
qual se manifesta na redução do campo de sua aplicação, embora permaneça como
essência do negócio jurídico.
Percebe-se, assim, que toda noção acerca do conceito de
boa-fé objetiva encontra-se estritamente vinculada a preceitos de ordem ética e
moral, que servem para demonstrar a influência de outras áreas do saber junto
ao Direito, como são os casos, por exemplo, da Filosofia, História, Sociologia
e Economia.
6. A FUNÇÃO INTEGRATIVA
DA BOA-FÉ OBJETIVA
Há de se
destacar a função integrativa do princípio da boa-fé objetiva, porque, às
vezes, os contratantes, ao redigirem o contrato, por omissão, deixam de prever
alguma cláusula que poderá interferir no desenvolvimento contratual desejado
pela lei e pela real vontade das mesmas partes.
A título de ilustração, importa notar que a aplicação da
teoria do adimplemento substancial decorre da função de controle da boa-fé
objetiva, de modo a impedir que o inadimplemento mínimo ou insignificante do
devedor seja motivo suficiente para ensejar a ruptura do contrato por parte do
credo, na esteira, inclusive, do que tem se solidificado na jurisprudência do
STJ:
ARRENDAMENTO MERCANTIL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE.
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. Trata-se
de REsp oriundo de ação de reintegração de posse ajuizada pela ora recorrente
em desfavor do recorrido por inadimplemento de contrato de arrendamento
mercantil (leasing) para a aquisição de 135 carretas. A Turma reiterou, entre outras questões, que, diante
do substancial adimplemento do contrato, qual seja, foram pagas 30 das 36
prestações da avença, mostra-se desproporcional a pretendida reintegração de
posse e contraria princípios basilares do Direito Civil, como a função social
do contrato e a boa-fé objetiva. Ressaltou-se que a teoria do
substancial adimplemento visa impedir o uso desequilibrado do direito de
resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol
da preservação da avença, com vistas à realização dos aludidos princípios.
Assim, tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do
resultado final, daí a expressão “adimplemento substancial”, limita-se o
direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um
exagero, uma demasia. Dessa forma, fica preservado o direito de crédito,
limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode
escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do
contrato. Dessarte, diante do substancial adimplemento da avença, o credor
poderá valer-se de meios menos gravosos e proporcionalmente mais adequados à
persecução do crédito remanescente, mas não a extinção do contrato. Precedentes
citados: REsp 272.739-MG, DJ 2/4/2001; REsp 1.051.270-RS, DJe 5/9/2011, e AgRg
no Ag 607.406-RS, DJ 29/11/2004. REsp 1.200.105-AM, Rel. Min. Paulo de Tarso
Sanseverino, julgado em 19/6/2012.
Assim, a função
do princípio da boa-fé objetiva, nessa hipótese, é acrescentar o que não consta
expressamente do contrato, suprindo as falhas contratuais, inclusive
atentando-se ao fato de que “nem
sempre a vontade por si só é capaz de prever todas as possibilidades do
negócio”.
Consoante o entendimento de Edílson Pereira
Nobre Júnior,
o mandamento de que
o devedor, ao cumprir a prestação, deva adaptar-se à boa-fé respalda essa
assertiva, porquanto evoca a necessidade de, nas situações particulares de
conflito, amoldar a resolução deste ao caminho da justiça material.
Por ser uma cláusula geral aberta, como já
salientado acima, o princípio da boa-fé objetiva possui certa dose de
flexibilidade, no sentido de vir a adequar determinado contrato dentro da
sistemática exigida na sociedade contemporânea. Para tanto,
el juez podrá proceder a la integración del
estatuto, integración que en este caso no consiste em completar, sino en
corregir; no se incorpora una norma nueva, basada en el principio de buena fe,
sino que se corrige una norma que atenta contra este principio básico en la
regulación jurídica.
Há julgados que enfrentam a questão de maneira corajosa e
correta, pronunciando-se a favor da função integrativa do princípio da boa-fé
objetiva, por considerá-lo, acertadamente, um princípio geral de direito:
Responsabilidade
civil. Estacionamento. Relação contratual de fato. Dever de proteção derivado
da boa-fé. Furto de veículo. O estacionamento bancário que põe à disposição dos
seus clientes uma área para estacionamento dos veículos assume o dever de
proteger os seus e a pessoa do usuário. O vínculo tem sua fonte na relação
contratual de fato assim estabelecida, que serve de fundamento à
responsabilidade civil pelo dano decorrente do descumprimento do dever.
Assim, diante da ausência de alguma cláusula contratual,
quer seja proposital ou não, verifica-se que a boa-fé objetiva visa corrigir
essa falha, lançando sobre a relação contratual as cores que lhe são
peculiares, ou seja, dentro de um padrão ético de conduta que deveria ser
obedecido pelas partes.
7. FUNÇÃO CONTROLADORA
DA BOA-FÉ OBJETIVA
A boa-fé tem por escopo controlar todas as manifestações
de vontade, limitando-as ao exercício de direitos daí decorrentes. Não mais se
aplica o entendimento de que tudo que não estiver proibido no contrato ou na
lei torna-se, por via de consequência, permitido. Essa visão ultrapassada dava
azo a inúmeras falcatruas, sempre em prejuízo da parte mais vulnerável da
relação jurídica.
Portanto, toda manifestação de vontade apta a gerar
efeito jurídico deve harmonizar-se com o princípio da boa-fé objetiva, pois
este é um verdadeiro divisor de águas a respeito da verificação do que é válido
e do que não o é.
Comumente, vários excessos são encontrados no “mundo do
Direito”, como sói acontecer em contratos de adesão, influenciados, na maioria das
vezes, por cláusulas tidas por abusivas, capazes de comprometer o equilíbrio
contratual. A boa-fé, quando se depara com os excessos, faz com que eles sejam
contornados e adequados às normas de conduta exigidas. Sendo a boa-fé um padrão
ético de conduta, um standard que visa impor lealdade, honestidade e
probidade, toda manifestação que a desatenda deve ser controlada, visando a
correta aplicação do direito ao caso concreto.
Encontrando cláusula contratual que contrarie a boa-fé
objetiva, o magistrado deve, em um primeiro momento, considerá-la nula de pleno
direito, para, posteriormente, reescrevê-la, de forma a adequá-la à real
vontade das partes, preservando a existência do contrato, se possível.
Neste diapasão, posicionou-se o Superior Tribunal de
Justiça, em caso de abuso de direito:
Conta corrente. Apropriação do saldo devedor pelo
banco credor. Numerário destinado ao pagamento de salários. Abuso de direito.
Boa-fé. Age com abuso de direito e viola a boa-fé o banco que, invocando
cláusula contratual constante do contrato de financiamento, cobra-se lançando
mão do numerário depositado pela correntista em conta destinada ao pagamento
dos salários de seus empregados, cujo numerário teria sido obtido junto ao
BNDES. A cláusula que permite esse procedimento é mais abusiva que a
cláusula-mandato, pois, enquanto esta autoriza apenas a constituição do título,
aquela permite a cobrança pelos próprios meios do credor, nos valores e no
momento por ele escolhidos. Recurso conhecido e provido.
A função controladora, como se vê, pretende coibir qualquer prática ou tentativa que vise desvirtuar a aplicação da boa-fé objetiva, mesmo que, para tanto, haja a necessidade de se considerar nula uma ou algumas cláusulas contratuais convencionadas pelas partes, interferindo-se, dessa forma, na autonomia da vontade.
8. FUNÇÃO
INTERPRETATIVA DA BOA-FÉ OBJETIVA
Por intermédio da interpretação, busca-se descobrir o
verdadeiro sentido de uma determinada manifestação de caráter negocial.
Existindo uma lacuna ou até mesmo uma expressão confusa, dificultando a tarefa
do intérprete, deve-se socorrer da boa-fé objetiva.
Assim houve por bem decidir o Tribunal de Justiça de São
Paulo:
Seguro – Plano de Saúde – Doença Preexistente – Inocorrência – Implante de prótese – Declarado na próstata – Revisão quase dez anos após a celebração do seguro – Exclusão, no contrato, de processo degenerativo – Cláusula restrita que, apesar de legal, deve ser interpretada de forma razoável, à luz do bom-senso e da boa-fé – Abusividade Reconhecida – Ação procedente – Embargos rejeitados - Ementa oficial: Contrato de Seguro-Saúde - Embora legais, as cláusulas que restringem os riscos assumidos pela seguradora devem ser interpretadas de forma razoável, em conformidade com o bom senso e a boa-fé que necessariamente informam os contratos, de modo que a exclusão de doenças e lesões preexistentes não importem a não cobertura da futura necessidade de renovação de cirurgias anteriores ou de atendimento, dado seu atual estágio involutivo, de processos degenerativos cujas origens podem remontar a um passado distante.
Segundo o STJ, a função interpretativa oriunda da boa-fé
objetiva pode ser utilizada para estender a cobertura do contrato de seguro ao
crime de extorsão, quando as cláusulas faziam menção apenas às hipóteses de
roubo, furto e incêndio, por força da aproximação existente entre os citados
tipos penais e na confiança depositada pelo segurando quando da celebração do contrato.
Por oportuno, vale a pena transcrever o excerto que
segue:
DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO DE VEÍCULO.
PREVISÃO DE COBERTURA DE CRIME DE ROUBO. ABRANGÊNCIA DO CRIME DE EXTORSÃO. É
devido o pagamento de indenização por seguradora em razão dos prejuízos
financeiros sofridos por vítima de crime de extorsão constrangida a entregar o
veículo segurado a terceiro, ainda que a cláusula contratual delimitadora dos
riscos cobertos somente preveja as hipóteses de colisão, incêndio, furto e
roubo. Em que pese ser de rigor a interpretação restritiva em matéria
de direito penal, especialmente ao se aferir o espectro de abrangência de
determinado tipo incriminador, isso por força do princípio da tipicidade
fechada ou estrita legalidade (CF, art. 5º, XXXIX; e CP, art. 1º), tal viés é
reservado à seara punitivo-preventiva (geral e especial) inerente ao Direito
Penal, cabendo ao aplicador do Direito Civil emprestar aos institutos de
direito privado o efeito jurídico próprio, especialmente à luz dos princípios
da boa-fé objetiva e da conservação dos contratos. A restrição legal do art.
757 do CC encerra vedação de interpretação extensiva somente quando a cláusula
delimitadora de riscos cobertos estiver redigida de modo claro e insusceptível
de dúvidas. Assim, é possível afastar terminologias empregadas na construção de
cláusulas contratuais que redundem na total subtração de efeitos de determinada
avença, desde que presente um sentido interpretativo que se revele apto a
preservar a utilidade econômica e social do ajuste. Além disso, havendo relação
de consumo, devem ser observadas as diretrizes hermenêuticas de interpretação
mais favorável ao consumidor (art. 47, CDC), da nulidade de cláusulas que
atenuem a responsabilidade do fornecedor, ou redundem em renúncia ou disposição
de direitos pelo consumidor (art. 51, I, CDC), ou desvirtuem direitos
fundamentais inerentes à natureza do contrato (art. 51, § 1º, II, CDC). A
proximidade entre os crimes de roubo e extorsão não é meramente
topológico-geográfica, mas também conceitual, uma vez que, entre um e outro, o
que essencialmente os difere é a extensão da ação do agente criminoso e a
forçada participação da vítima. A distinção é muito sutil já que, no roubo, o
réu desapossa, retira violentamente o bem da vítima; na extorsão, com o mesmo
método, obriga a entrega. Dessa forma, a singela vinculação da cláusula que
prevê os riscos cobertos a conceitos de direito penal está aquém daquilo que se
supõe de clareza razoável no âmbito das relações consumeristas, sobretudo
diante da carga limitativa que o dispositivo do ajuste encerra, pois a peculiar
e estreitíssima diferenciação entre roubo e extorsão perpassa o entendimento do
homem médio, mormente em se tratando de consumidor, não lhe sendo exigível a
capacidade de diferenciar tipos penais. Trata-se de situação distinta daquela
apreciada pela Quarta Turma, na qual se assentou que a cobertura securitária
estabelecida para furto e roubo não abrangia hipóteses de apropriação indébita
(REsp n. 1.177.479-PR). Precedente citado: REsp 814.060-RJ, DJe 13/4/2010. REsp
1.106.827-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 16/10/2012.
Nem sempre a manifestação de vontade viciada influi de
maneira decisiva sobre o objeto principal do negócio jurídico. No entanto, como
a boa-fé se reveste em um verdadeiro norte a ser seguido, deve-se aplicá-la,
para, ao menos, retificar defeitos de expressão, pois ”embora a função interpretativa não altere a estrutura da relação
obrigacional, pode alterar o conteúdo dos elementos que dela se desenvolvem,
valorizando-se o significado objetivo das expressões e estipulações feitas
pelas partes”.
Essa interpretação deve ser proferida de uma maneira
equilibrada, atentando-se para a autonomia de vontade e para os princípios que
norteiam o direito obrigacional, do qual se destaca o da boa-fé objetiva, sem
perder de vista o momento histórico vivido pela sociedade.
Como um elemento de interpretação da boa-fé, deve-se
destacar a função limitadora, que leva em conta a teoria dos atos próprios (venire
contra factum propirum), porque se uma das partes contratantes agiu de
determinada forma durante qualquer fase do contrato, torna-se inadmissível que
em momento posterior venha agir em total contradição com a conduta antes
praticada.
Trata-se de um aspecto negativo derivado do princípio da
boa-fé objetiva, que tem por finalidade impedir a prática de atitudes
contraditórias por parte de um sujeito integrante de uma determinada relação
contratual. Por outro lado, trata-se também de um aspecto positivo ao
estabelecer a exigência de atuação com coerência, que nada mais é do que uma
vertente do imperativo de observar a palavra dada, contida na cláusula geral de
boa-fé.
Ao limitar-se o campo de atuação dos contratantes,
quer-se evitar que um contratante venha a adotar mais de um padrão de conduta,
buscando angariar possíveis vantagens de acordo com o que cada situação possa
lhe oferecer.
Havendo
duas ou mais interpretações para uma mesma estipulação contratual, deve o
intérprete fazer prevalecer o entendimento que melhor represente a vontade das
partes e que esteja de acordo com a exigência de atuação da boa-fé objetiva.
Importa frisar também que esse mesmo intérprete deve,
sempre que possível, fazer um esforço intelectual no sentido de não extinguir o
contrato celebrado pelas partes, haja vista que não é essa a vontade das partes
que o celebram.
Por isso, sempre que um contrato for omisso, dúbio ou
contiver cláusula com teor completamente distante do desejado pelo ordenamento
jurídico, caberá ao operador do direito a tarefa de aproveitar a parte do
contrato que não se mostrar imprestável e adequar as cláusulas que não
atenderam o seu fim para que se verifique harmonia contratual.
9. OS DEVERES
CONTRATUAIS ANEXOS
Ao lado da função limitativa de direitos encontram-se
situados os denominados deveres contratuais anexos, frisando que o contrato não
produz somente os deveres expressamente convencionados entre as partes, pois
cria deveres que decorrem implicitamente dele e que também obrigam os
contratantes.
O padrão de comportamento a ser cumprido pelo contratante
não se estende apenas ao que se encontra estipulado nas cláusulas contratuais.
A boa-fé objetiva transfere para os contratantes a obrigação de também
cumprirem os deveres implicitamente decorrentes de uma relação contratual,
aquilo que honesta e legitimamente se espera.
O dever de informar tem de ser exercido da maneira mais
abrangente possível, sempre levando em consideração a complexidade técnica, a
especialização do negócio, o nível cultural do outro contratante etc., sem
perder de vista a possibilidade de a outra parte merecer maior atenção em
virtude de sua menoridade, de não dominar o idioma estrangeiro, ser portador de
algum defeito físico, dentre outros.
Há que se observar, ainda, a questão do abuso de
confiança, em que uma das partes confere poderes à outra, não exigindo
informações acerca do futuro negócio. Exemplo: A valendo-se da confiança que B
lhe deposita, celebra com C um contrato de compra e venda de caráter aleatório,
comprometendo o patrimônio de A.
Dentro
desses deveres anexos, os que mais se destacam são os de informar e de
cooperar. É o que ocorre, por exemplo, com o artigo 30 do Código de Defesa do
Consumidor (princípio da vinculação), ao estabelecer que
toda informação ou publicidade, suficientemente
precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a
produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer
veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado.
No ponto, hipótese que pode ser destacada e que
geralmente sói em ocorrer é a omissão das instituições financeiras de informar o
cliente, de modo correto e claro, acerca de todos os termos do contrato, a fim
de que ele não seja surpreendido de maneira desagradável no futuro. Como a
maioria esmagadora dos contratos envolvendo instituições financeiras é
caracterizada pela completa adesão do cliente aos termos já de antemão
estabelecidos por ela mesma, o dever de informação é o mínimo que se pode
exigir no caso, quer se apliquem as regras do Código de Defesa do Consumidor,
quer se apliquem as do Código Civil.
Em relação ao dever de cooperação, merece atenção
especial o julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, que, apesar de
versar sobre uma relação de consumo, serve como paradigma para a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva nas relações obrigacionais “entre iguais” contidas
no novo Código Civil:
Plano de saúde. Limite temporal de internação.
Cláusula abusiva. 1. É abusiva a cláusula que limita no tempo a internação do
segurado, o qual prorroga a sua presença em unidade de tratamento intensivo ou
é novamente internado em decorrência do mesmo fato médico, fruto de
complicações da doença, coberta pelo plano de saúde. 2. O consumidor não é
senhor do prazo de sua recuperação, que, como é curial, depende de muitos
fatores, que nem mesmo os médicos são capazes de controlar. Se a enfermidade
está coberta pelo seguro, não é possível, sob pena de grave abuso, impor ao
segurado que se retire da unidade de tratamento intensivo, com o risco severo
de morte, porque está fora do limite temporal estabelecido em uma determinada
cláusula. Não pode a estipulação contratual ofender o princípio da
razoabilidade, e, se o faz, comete abusividade vedada pelo art. 51, IV do
Código de Defesa do Consumidor. Anote-se que a regra protetiva, expressamente,
refere-se a uma desvantagem exagerada do consumidor e, ainda, a obrigações
incompatíveis com a boa-fé e equidade. 3. Recurso especial conhecido e provido.
Portanto, o dever de cooperação faz florescer na mente
dos contratantes a ideia de que o individualismo deve ser superado, a fim de
que a relação contratual possa ser vista como uma relação de parceria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência de o mundo ter sofrido significativas mudanças
sociais nos últimos tempos, o legislador pátrio, gradativamente, foi inserindo
no ordenamento jurídico normas de caráter aberto voltadas, notadamente, após a
promulgação da Constituição Federal de 1988.
Mais do que nunca, o Direito das Obrigações foi
influenciado por valores outrora pouco recorrentes, como, por exemplo, os
oriundos da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Como princípio geral de direito, agora inequivocamente
positivado no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil, a boa-fé
objetiva tem o mérito de fazer inserir na mente dos contratantes a ideia de
agirem sempre com lealdade, correção, honestidade e fidelidade, em todas as
fases do contrato, incluindo, entre elas, a pré e a pós. Por consequência,
havendo a conscientização da necessidade de se adequarem a um padrão ético de
conduta, os contratantes tendem a se ver como verdadeiros parceiros,
humanizando, assim, os chamado “mundo dos negócios”.
Não que a autonomia da vontade tenha deixado de existir,
ocorre que ela não é mais soberana. Quando em conflito com a boa-fé objetiva,
definha-se.
Com efeito, pode-se dizer que o escopo do princípio da
boa-fé objetiva não é a defesa exclusiva do contratante hipossuficiente, tal
como fazem as normas do Código de Defesa do Consumidor, mas sim o de assegurar
a prevalência do interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo
social, equilibrando com justeza a relação contratual, ou seja, em termos de
assegurar a eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana.