JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA
Questão que tem sido muito debatida no
cenário jurídico é a que envolve a possibilidade de o Poder Judiciário proferir
decisões que possam configurar o que muitos entendem como usurpação de funções
atinentes aos demais Poderes da República.
Tem-se indagado muito acerca da possibilidade de algumas decisões que
cabem ao Legislativo e ao Executivo serem deslocadas para o âmbito da justiça
constitucional, mesmo levando-se em consideração o fato de que os integrantes
do Poder Judiciário não exercem participação popular direta pela via eleitoral.
A tarefa de responder tal pergunta não é fácil. Porém, objetiva-se, aqui,
apresentar alguns parâmetros que poderão servir de reflexão para que ocorra, em
última análise, a concretização das promessas constitucionais, sobretudo, no
tocante aos direitos sociais, como educação e saúde.
Antes, porém, de se adentrar ao assunto
propriamente dito, parece necessário dizer que aquelas fórmulas abstratas da
lei já não trazem mais todas as respostas, uma vez que, o paradigma jurídico
que na modernidade transferiu-se da lei para o juiz, transfere-se agora para o
caso concreto, para que, dessa forma, seja buscada a melhor solução possível.
Ocorre que, com apoio nos ensinamentos
de Luis Roberto Barroso (2006, p. 05), o discurso acerca do Estado atravessou três
fases distintas ao longo do século passado: a pré-modernidade (onde se desenvolveu
o Estado Liberal), a modernidade (onde se desenvolveu o Estado Social) e a
pós-modernidade (onde se desenvolve, com algumas vacilações, o Estado
Neoliberal).
Contudo, a constatação a que se chega a
de é que o Brasil encontra-se hoje situado na pós-modernidade sem ter sido
liberal nem moderno, eis que é herdeiro de uma tradição autoritária e
populista, elitizada e excludente, relacional, mansa com os ricos e dura com os
pobres, por isso, constata-se que chegou ao terceiro milênio atrasado e com
pressa (BARROSO, 2006, p.05).
Desse modo, como não houve Estado Social no Brasil, as promessas da
modernidade não foram realizadas. Um Estado que deveria intervir na esfera
jurídica do particular com o intuito de efetivar a igualmente material e de
promover a justiça social, diminuindo a pobreza e as desigualdades sociais,
ficou simplesmente no papel e de lá não saiu. Basta olhar para os índices de
mortalidade infantil e de analfabetismo para certificar a procedência dessas
alegações.
O Brasil é um país de modernidade
tardia. Por isso, segundo Lenio Streck (2002, p. 79), o agente principal da
política social ainda deve ser o Estado, haja vista que as políticas
neoliberais que buscam minimizar o Estado não se disporão o bastante para
realizar tais objetivos. Eis, portanto, o dilema brasileiro: quanto mais se
necessita de políticas públicas, mais o Estado, considerado aqui o único agente
capaz de erradicar as desigualdades sociais, se encolhe!
De acordo com essas premissas aqui trazidas à tona, no seio de um Estado
Democrático de Direito, ou que se pretende Democrático de Direito, vê-se que a
inacreditável inércia dos Poderes Executivo e Legislativo na realização de
programas sociais, como sói acontecer na efetivação dos direitos à saúde e à
educação, faz com que tais direitos constitucionais passem a ser concretizados
no plano da realidade social por via alternativa, ou seja, por meio da atuação
do Judiciário.
É evidente que não se está aqui por
defender a constituição de uma “República de toga”. Ao contrário. A
participação do Poder Judiciário na efetivação de direitos constitucionais deve
ser realçada ante a existência desse cenário desolador proporcionado pelos
demais Poderes.
Em outras palavras: a atuação do Poder
Judiciário, nos moldes aqui relatados, pretende cumprir os objetivos traçados
na Constituição Federal, como a efetivação da dignidade da pessoa humana e a
construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária, justamente em razão
da omissão dos outros Poderes. Isso quer dizer o Poder Judiciário legitima-se a
concretizar tais direitos justamente em virtude dos inúmeros espaços vazios deixados
pelo Executivo e o Legislativo.
Essa judicialização da política, que ocorre sempre que os tribunais, no
regular desempenho de suas funções, acabam por afetar de modo significativo as
condições da ação política, conduz, por via de consequência, à politização da
justiça, o que faz nascer, de acordo com o português Boaventura de Souza Santos
(2003), uma situação de “stress constitucional”. Por essa razão, deve procurar-se
atender ao objetivo de realizar uma atuação conforme os melhores critérios
técnicos, para, com isso, neutralizar eventuais tentativas de pressão ou
manipulação.
A judicialização da política é apta a garantir um “mínimo existencial”,
que varia de lugar para lugar, e que pode ser entendido como a combinação de
capacidades para o exercício de liberdades políticas, civis, econômicas e
culturais. Nesse conceito não se destaca apenas o critério econômico, porque,
segundo Fernando Scaff (2006, p. 150), até mesmo com renda relativamente baixa,
um país pode obter significativos resultados de qualidade de vida de toda a
população, desde que, obviamente, restem garantidos os serviços de saúde e
educação da todos.
A Constituição Federal de 1988 é composta por normas que se referem ao
dever-ser e não simplesmente ao ser. São normas que pretendem vincular a
atuação de todos os Poderes da República, além de todos os demais atores, a
fazer acontecer aquilo que está disposto no papel. Sobre este ponto, parece
mais do que evidente que não basta declarar a existência de um grupo de
direitos, pois no estágio da realidade contemporânea, o que se necessita é
promover a efetiva concretização dos direitos que foram declarados.
A Constituição salienta que as conquistas que se referem aos direitos
fundamentais não podem ser ignoradas. E, assim sendo, os magistrados devem se
mostrar atentos em relação a inúmeros diplomas legislativos que ferem, de
maneira descarada, direitos que foram tão arduamente conquistados ao longo dos
anos.
Por força do princípio da proibição do retrocesso social, o Poder
Judiciário deve declarar a invalidade da revogação de normas que ampliem
direitos fundamentais, sem que a revogação tenha sido acompanha de uma política
equivalente. A invalidade, por ser inconstitucional, ocorre quando se revoga
uma norma infraconstitucional concessiva de um direito, deixando um vazio em
seu lugar, esvaziando o comando constitucional, como se dispusesse contra ele
diretamente.
Analisados tais assuntos em apertada
síntese, passa-se para uma análise mais prática do que se pretende enfatizar,
para que se possa visualizar com maior nitidez exatamente como é que se
desenvolve a judicialização da política.
A educação é um direito de todos e um
dever do Estado e da família. E o ensino fundamental é obrigatório e gratuito,
razão pela qual deve revestir-se de uma prioridade a ser observada. Afinal de
contas, como será possível construir uma sociedade mais justa, livre e
solidária, capaz de erradicar a pobreza e diminuir as desigualdades sociais sem
que a educação seja levada a sério pelos governantes? À vista disso, ante esse
dever do Estado, se for constatada a falta de vagas na rede pública de ensino,
pode-se buscar a tutela judicial deste direito.
A título de exemplo, o Ministério Público pode propor uma ação civil
pública para obrigar referido município a criar ou proporcionar vagas para
todas as crianças, sob pena de recair sobre ele a aplicação de uma
multa-diária, sem prejuízo da responsabilização penal do prefeito.
Na Apelação Civil nº 70022182281, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, em acórdão publicado aos 13 de dezembro de 2007, cuidou de uma ação
judicial proposta por um aluno, devidamente representado por sua mãe, com o
objetivo de atingir a isenção do pagamento de tarifas atinentes ao transporte
público coletivo municipal.
O Município defendeu-se, alegando frontal ofensa à Separação de Poderes e
à Lei Municipal.
O Tribunal acolheu o pedido formulado na ação para condenar o Município a
fornecer o transporte escolar, porquanto em consonância com o que dispõe o art.
227 da Constituição Federal e com o art. 53, V e VII, do ECA, que assegura,
expressamente, a obrigatoriedade do Estado quanto ao fornecimento desse tipo de
transporte.
Mude-se a área dos exemplos, para falar
um pouco da saúde.
Caso um cidadão necessite de um remédio
imprescindível, cuja ausência gera risco de morte ou grave risco à saúde, e
receba um “não” do Estado, no tocante ao fornecimento gratuito deste referido
remédio, pode ele se valer da impetração de um mandado de segurança (art. 5º,
LXIX, da CF) ou a propositura de uma ação voltada à entrega de coisa, nos
moldes do art. 461-A, do Código de Processo Civil, na qual o juiz, ao conceder
a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação, sendo que,
por força do parágrafo 5º do art. 461, do CPC, aplicável à espécie, para a
efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente,
o juiz poderá determinar as medidas necessárias, como, por exemplo, o bloqueio
das verbas públicas, conforme decidiu a 2ª Turma do STJ, no Agravo Regimental
no Recurso Especial 851797, do Rio Grande do Sul, relatado pelo Ministro
Humberto Martins.
Outro julgamento interessante, proferido
pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, na Apelação Civil nº
70022083455, de 06 de dezembro de 2007, referente ao fornecimento de remédios
deve ser mencionado.
O Ministério Público ajuizou uma ação em face do Estado e de um Município,
com o intuito de obrigá-los a fornecer alimentação especial, curativos para
sessões de hidroterapia tedaderm e
sonda para gastronomia nº 16, enquanto perdurar a patologia, no caso, paralisia
cerebral e tetraplagia, conforme apurado em laudo médico.
O TJRS julgou procedente o pedido pleiteado pelo Ministério Público e
tratou de um princípio extremamente relevante para questões como essa: o
princípio da reserva do possível, que é condicionado pelas disponibilidades
orçamentárias. Ocorre que, mesmo diante dessas disponibilidades, os
legisladores não têm ampla liberdade de conformação, pois estão vinculados à
supremacia constitucional, devendo implementar os objetivos constitucionais. A
reserva do possível só pode ser alegada quando se comprovar que os recursos
públicos estão sendo empregados de modo proporcional aos problemas enfrentados
por parte da população que não pode exercer sua liberdade jurídica, e,
progressivamente, ante o fato de não conseguir a liberdade real necessária para
tanto ou não conseguir exercer suas capacidades para exercer tais liberdades.
Já o Supremo Tribunal Federal, num caso
envolvendo o fornecimento de remédios aos portadores do vírus HIV, decidiu, num
acórdão relatado pelo Ministro Celso de Mello (AGRRE/RS, Rel. Min. Celso de
Mello, DJU 24.11.2000), que a norma consubstanciada no art. 196 da Constituição
Federal possui aplicabilidade imediata, que independente de intermediação
legislativa.
Tão proveitosos foram os ensinamentos
presentes em tal decisão, que merecem ser aqui reproduzidos:
O
caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política – que tem
por destinatário todos os entes políticos que compõem, no plano institucional,
a organização federativa do Estado brasileiro – não pode converter-se em mera
promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando
justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir de maneira
ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável
de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do
Estado.
Inúmeros
outros casos poderiam ser trazidos e colacionados à exaustão. Entretanto, os
que foram abordados já mostram o quão importante se mostra a atuação judicial
ante a desídia dos integrantes dos demais Poderes da República para com a
efetivação e o cumprimento das políticas públicas sociais.
Desse
modo, deve haver uma premente mudança de mentalidade, com o objetivo de se legitimar
ainda mais o Poder Judiciário a concretizar políticas públicas deixadas de
lado, à margem, pelos demais Poderes da República.
Esse
posicionamento tem força suficiente para provocar sensíveis reformulações, sobretudo,
no tocante às disponibilidades orçamentárias.
Não
se pode esquecer que o Direito é um instrumento de transformação social, que
atribui à função jurisdicional à realização do projeto de Estado delineado no
pacto constitucional.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO,
Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional
Brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). A Nova Interpretação Constitucional:
Ponderação, Direitos Fundamentais e Relações Privadas. BARROSO, Luís Roberto
(Organizador). 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
SANTOS,
Boaventura de Souza. A Judicialização da Política. <http://www.ces.uc.pt/opiniao/bss/078.php>
Acesso em: 01.06.2009.
SKAF,
Fernando. Diálogos constitucionais:
direito, neoliberalismo e desenvolvimento em países periféricos. Org.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; LIMA, Martonio Mont’Alverne Barreto. Rio
de Janeiro: Renovar, 2006.
SILVA,
José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
STRECK,
Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e
hermenêutica: uma nova crítica ao direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
Ótimo tema para um TCC!
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