segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

A JURISDIÇÃO À LUZ DO LIBERALISMO JURÍDICO
 
             Na Modernidade, quase nada que havia no Ocidente ficou isento às influências do liberalismo. Ao romper com o Estado absolutista, passou-se a consagrar o entendimento de que o Estado deveria intervir o mínimo possível na esfera jurídica dos particulares, conforme os escritos de John Locke e Montesquieu.

            Efetivou-se a teoria da separação de poderes. Os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) haveriam de estar separados um do outro, mas estando ao mesmo tempo harmoniosamente ligados, com base na ideia de que o poder detém o poder.

            O papel reservado ao Poder Judiciário era o de fazer com que o juiz ignorasse as mais diferentes posições sociais, para que proferisse sentença judicial baseada no texto expresso da lei. O juiz haveria de agir como se fosse a bouche de la loi (a boca da lei).

            Ao magistrado incumbia o mister de aplicar a lei produzida pelo legislador ao caso concreto, como se fosse um instrumento estatal por meio do qual deveria somente declarar o que estivesse literalmente contido na lei, porque a tarefa de criação do Direito ficava a cargo exclusivo do Legislativo.

            Como decorrência do liberalismo jurídico, verdadeiros dogmas foram sedimentados no processo civil, a saber:

a)    a jurisdição tinha a finalidade de tutelar apenas os direitos subjetivos violados. Buscava-se a reparação do dano, pois ao juiz não se permitia a atuação de sua vontade antes que o ordenamento jurídico fosse violado. Qualquer ato judicial que viesse a tutelar um direito ainda não violado seria considerado como um atentado à liberdade individual. Assim, inexistia possibilidade de se realizar a tutela preventiva dos direitos. Os processualistas tinham em mente que a reparação do dano deveria ser realizada por meio da prestação do equivalente econômico. Vigorava o entendimento de que era o bastante pôr no bolso do particular um equivalente em dinheiro;

b)    os atos judiciais eram desprovidos de qualquer poder de imperium. Não se interferia na realidade existente além da relação processual. O juiz não podia atribuir força executiva às suas decisões por meio da imposição de coerção, como, por exemplo, aplicação de multas em caso de descumprimento;

c)    o juiz não possuía poderes instrutórios. As provas produzidas no processo deveriam ser requeridas pelas partes. O desfecho do processo se dava unicamente em razão do comportamento realizado pelas partes. O juiz não interferia na relação processual nem mesmo para determinar a realização de uma prova de ofício, quando tinha consciência de que a “verdade dos fatos” estava sendo construída pela astúcia ou em virtude de maior habilidade de uma das partes; 

d)    o juiz haveria de ser neutro. Ao juiz era vedado fazer com que suas paixões, suas ojerizas, sua ideologia e qualquer outra ordem de sentimentos, viessem à tona no momento de proferir alguma decisão judicial. A sua função como intérprete estava limitada à descoberta das leis que regiam o “fato normativo”. Toda atenção era voltada para os dizeres contidos na norma. Os fatos concretos somente entravam em cena no momento de sua subsunção à norma;

e)    a busca incessante da certeza. O juiz não podia decidir com base em convicção de verossimilhança, diante da pretensa semelhança então propalada do Direito com as ciências matemáticas. O juiz só estava autorizado a julgar o mérito ao término de uma cognição (conhecimento) plena e exauriente, que privilegiasse a plenitude da defesa; 

f)     nulla executio sine titulo. Nula era a execução que não fosse baseada em um título executivo. O direito material apenas poderia ser concretamente realizado após a prolação de uma sentença judicial transitada em julgado. Tanto era assim, que a doutrina tradicional (Chiovenda) considerava que a execução provisória da sentença era uma “figura anormal”.

            Portanto, a ciência processual civil nasceu comprometida com os ideais do liberalismo clássico e com o pressuposto racionalista que determinou a submissão do juiz ao poder político. Enquanto oferecia-se às partes um procedimento amplo, apto a proporcionar a plenitude da defesa em juízo, fazendo com que o Estado viesse a decidir com a segurança que o tratamento exaustivo lhe daria, esse mesmo procedimento haveria de esgotar todas as possíveis questões litigiosas, porque assim asseguraria para sempre a máxima amplitude da coisa julgada. 

            Com a superação – parcial, infelizmente, pois ainda há quem não tenha notado a mudança de paradigma –, do modelo jurídico liberal-individualista e a cultura formal-positivista, um novo olhar deve ser direcionado à jurisdição. Para estudá-la com seriedade, faz-se necessário abordar o pós-positivismo, o ativismo judicial, os direitos fundamentais, o controle de constitucionalidade judicial, a interpretação de acordo com a Constituição Federal, às normas abertas à interpretação, quais são os seus escopos e a construção judicial de procedimentos adequados à tutela dos direitos.

            Mas essa é uma coversa para outra(s) oportunidade(s)...

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